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O ladrão de mitos

“Quíron suspirou.
A maioria dos observadores inteligentes concordaria que o roubo não faz o estilo de Poseidon. Mas o Deus do Mar é orgulhoso demais para tentar convencer Zeus disso. Zeus exigiu que Poseidon devolva o raio até o solstício de verão. Isso será em 21 de junho, dez dias a contar de agora. Poseidon quer um pedido de desculpas por ser chamado de ladrão até essa mesma data. Eu tinha esperanças de que a diplomacia prevalecesse, que Hera ou Demeter ou Héstia fariam os dois irmãos verem a razão. Mas a sua chegada inflamou o gênio de Zeus. Agora nenhum dos dois deuses quer recuar. A não ser que alguém intervenha, a não ser que o raio-mestre seja encontrado e devolvido a Zeus antes do solstício, haverá guerra. E você sabe como poderia ser uma guerra.
– Ruim? – adivinhei
– Imagine o mundo em caos. A natureza em guerra consigo mesma. Os olimpianos forçados a escolher lados entre Zeus e Poseidon. Destruição. Carnificina. Milhões de mortos. A civiilzação ocidental transformada em um campo de batalha tão grande que fará a Guerra de Tróia parecer uma luta de balões d’água.
– Ruim – repeti.”

No mínimo duas vertentes verificáveis na atual literatura se cruzam nas páginas de O Ladrão de Raios, do americano Rick Riordan (Tradução de Ricardo Gouveia. Intrínseca, 400 páginas. R$ 29,90). A primeira é a de uma certa veia pop de releitura das mitologias antigas, um campo no qual mr. Neil Gaiman pontificou nos últimos anos graças a trabalhos como Sandman, Deuses Americanos e Os Filhos de Anansi, histórias que reapresentavam personagens mitológicos com um viés mais afeito ao que uma história em quadrinhos ou romances de aventura exigiam. A segunda linha de força pela qual é possível explicar a existência desse livro é puramente comercial. É simples: com o sucesso cinematográfico da série O Senhor dos Anéis, bem como a acachapante vendagem da série Harry Potter (também ela transformada em série cinematográfica de sucesso), criou-se um verdadeiro um filão editorial de livros nos quais o protagonista vive uma jornada por mundos fantásticos que mesclam fantasia e mitologia _ uma tentativa de catar o mais rápido possível um novo best-seller juvenil que garanta milhões em licenciamento de produtos e venda de direitos cinematográficos.

Foi assim com a trilogia Fronteiras do Universo, de Philip Pullmann (cujo primeiro episódio foi filmado com o nome de A Bússola de Ouro), com a trilogia “de tinta” de Cornelia Funke (que também já chegou ao cinema com Coração de Tinta) e até com a malfadada série Eragon (da qual também foi feito um filme e mais nenhum, se tivermos sorte). 

Ou aquilo é o Olimpo ou o bagulho era forte mesmo...

Ou aquilo é o Olimpo ou o bagulho era forte mesmo...

O Ladrão de Raios também embarca nessa onda. O livro é o primeiro a sair aqui no Brasil de uma série chamada Percy Jackson e Os Olimpianos, que acompanha a saga de Percy Jackson, jovem rebelde de 12 anos que nunca conheceu o pai, vive às turras com a mãe até descobrir que em pleno século 21 da nossa modernidade os deuses gregos ainda caminham pela Terra (sim, a ideia é mais ou menos a mesma de Os Eternos, de Jack Kirby — que o Gaiman andou reescrevendo tempos atrás). Criado sem pai, Jackson logo descobrirá que tem uma herança divina a resgatar e se envolverá em uma disputa política entre Zeus e seu irmão Poseidon.

A prosa do livro é bastante funcional, mais a serviço da história, sem grandes invenções ou mesmo requintes de estilo, mas um mérito ao menos Riordan tem: seu livro aborda uma história que, para ser fruida, necessita de um mínimo conhecimento prévio, e ele provê esse conhecimento ao longo do livro: é mais divertido ler que Poseidon e Zeus estão prestes a entrar em guerra tendo na lembrança que os dois (mais o terceiro irmão, Hades), repartiram o mundo no início dos tempos, após a guerra contra os Titãs (os deuses antigos, não a banda) que garantiu aos Olímpicos o domínio sobre o universo. Pequenas informações que Riordan vai semeando na narrativa sem truncá-la em demasia. Não é o novo Senhor dos Anéis, mas até que é divertido.

McCartney nos subterrâneos de Lugar Nenhum

Neste post falei a vocês um pouco sobre Neverwhere, o primeiro romance de Neil Gaiman, publicado em 2007 no Brasil, pela Conrad, com o nome de Lugar Nenhum.  Já nesse primeiro post, havia comentado que a circunstância que tornava Lugar Nenhum tão particular é que, em vez de ser um livro mais tarde adaptado em uma minissérie, era um livro que se havia originado do roteiro de uma, veiculada pela BBC em outubro de 1996, com roteiro e argumento de Gaiman e direção de Dewi Humphreys. Contava a história de Richard Mayhew (Gary Bakewell, cuja única credencial artística é ser a cara do Paul McCartney, o que lhe valeu o papel do músico duas vezes, uma delas em Backbeat, os cinco rapazes de Liverpool), sujeito sem graça num emprego burocrático que um dia socorre uma garota caída na rua. Ela é Door (Laura Fraser, uma jovem que depois disso embarcaria numa série de papéis secundários no cinema, mesmo o inglês, como a Lavínia daquele Tito Andronico com o Anthony Hopkins ou a ferreira de Coração de Cavaleiro, com o falecido Coringa Heath Ledger), foragida de um mundo localizado nos subterrâneos de Londres, um universo meio feudal meio mágico em que vivem figuras andrajosas invisíveis para os da “Londres-de-Cima”. A mesma história mais tarde viraria, além do romance, uma história em quadrinhos.

Apesar de ser um dos mais fracos trabalhos em prosa de Gaiman, o romance ainda é repleto dos elementos que tornaram o autor famoso: fantasia, referências, monstros, mundos imaginários grandiosos. E uma curiosidade que sempre tive foi saber como aquele universo havia sido transposto para a série de TV, ou melhor, como a série havia desenvolvido aquele universo que mais tarde Gaiman retomaria no romance. Como vivemos na era do Youtube, dia desses fui procurar algo no site e descobri lá não só algumas cenas, como toda a sequência da minissérie, exibida em seis capítulos de meia hora cada. E ao ver o programa, me dei conta de basicamente três coisas:

1º – provavelmente Gaiman deve ter achado a série tão ruim quanto eu, e a prova é que escreveu mais adiante o romance para tentar salvar sua reputação do desastre. Interpretações de tornar a Maysa teatro shakespeareano e sérias restrições orçamentárias tornam a série um depósito de situações de humor involuntário, algo que não acontece no livro, resgatado pela voz narrativa aparentada com a cadência dos contos de fada.

2º – A gente só percebe o quanto a ousadia de Peter Jackson e a evolução da tecnologia de criação digital (não esquecer que o realismo “impressionante” dos dinossauros de Parque dos Dinossauros estava havia apenas três anos no passado) mudaram nossa percepção do que esperar de um filme de fantasia quando depara com uma produção como esta. Em termos visuais, Neverwhere é pobre, tosca, com criaturas que parecem ter sido alugadas no zoológico mais próximo e efeitos que parecem saídos de um filme da Xuxa. E seu próprio tom solene e pretensioso a torna inviável até mesmo como um bom exemplar de produção B. Mesmo com os diálogos ágeis que Gaiman mais tarde aproveitaria no livro.

3º – Deveriam ter entregue a direção desse troço ou mesmo a concepção visual para o Dave McKean, já que é dele a melhor coisa da série, a abertura, que vocês podem ver no excerto abaixo. Ela começa exatamente a 1:00 de vídeo:

Retrospectiva 2008 – Livros

Dez livros de 2008

Isto deveria ter sido colocado no ar mais cedo, ainda mais porque o cara que assina este post não parece ter feito outra coisa na última semana que não retrospectiva de livros. Mas o causo é que para o Alerta Geral e suas especificidades, decidi fazer uma retrospectiva toda nova, analisando os livros mais bacanas que aportaram aqui no Brasil em 2008 e que tenham a ver com a proposta do blog, ou seja, circundem temas como tecnologia, cultura pop, ficção científica, rock’n’roll e afins. Digamos que é uma retrospectiva de literatura nerd ou ao menos para interessados. Com vocês, meus 10 livros de 2008, sem necessariamente ordem hierárquica:

Mona Lisa Overdrive, de William Gibson (Aleph)
Quem já navegou por este nosso site viu que Matrix, o filme, foi tema de discussão intensa por parte do nosso camarada Tcheloco. Uma coisa que sempre me chamou a atenção é que, quando se fala em Matrix, sempre se ressalta a originalidade do primeiro filme, e sim, os elementos foram realmente dispostos de modo bem original. Mas muita gente esquece de dizer que Matrix é, ao mesmo tempo, uma das melhores adaptações literárias de todos os tempos, até porque não é uma versão para a tela de um único livro, mas de toda uma corrente da ficção contemporânea, a assim denominada ficção cyberpunk, uma linhagem de obras de ficção científica que trata de temas como as relações tênues entre o real e o virtual, interações homem-máquina, e anti-heróis marginais que vivem à margem do sistema em uma sociedade na maioria das vezes totalitária. Um dos papas do gênero, William Gibson, foi quem primeiro cunhou termos como “ciberespaço”, em Neuromancer (1982), lançado há três anos em português pela Aleph, e Matrix, neste Mona Lisa Overdrive (1988), livro que encerra a trilogia  iniciada com Neuromancer e que conta ainda com Count Zero (também já publicado no Brasil). Em uma narrativa contada por cinco pontos-de-vista diferentes, Gibson mostra um mundo futurista no qual o grande barato é as pessoas se conectarem ao universo virtual chamado “matrix” para viver uma espécie de alucinação sensorial coletiva que substitui a realidade. Ali, os usuários participam de “stims”, filmes interativos com imersão virtual, grande sucesso de público. O livro mostra também que, desde o início de sua carreira, Gibson evoluiu no tratamento do tema e no manejo da trama, conseguindo dar a cada personagem uma voz e uma personalidade independente.

Nevasca, de Neal Stephenson (Aleph)
Se Gibson antecipou a internet e os ambientes de conexão em rede e realidade virtual, este outro gênio do gênero cyberpunk criou, em Nevasca (1992), uma delirante ficção científica postulando uma realidade na qual os usuários se conectam a um ambiente virtual por meio de uma representação gráfica de si mesmos, um “avatar” – e se alguém pensou em Second Life saiba que não é coincidência, o ambiente foi desenvolvido com alguma inspiração no livro, e não o contrário. Como costuma acontecer em ficções cyberpunk, o mundo como o conhecemos foi pro buraco, a realidade é uma selva de asfalto com bandoleiros sobre rodas e a economia já foi pro saco há horas, com os Estados Unidos transformados em um território de crimes e negócios ilícitos, uma constelação de estados independentes, alguns controlados por corporações financeiras e outras por mafiosos barra-pesada. Nessa realidade desencantada, trabalhar para a Máfia é a única chance de prosperar — e também de se ralar bonitinho. O personagem principal, Hiro Protagonist, é um entregador de pizza e um samurai urbano (não sei por que, mas as ficções científicas de modo geral padecem de um mesmo problema: a história contada no livro é ótima, mas sempre parece um pouco ridícula quando se resume) durante o dia e um freqüentador do “metaverso” à noite, onde assume a personalidade de um avatar.

Kafka à Beira-Mar, de Haruki Murakami (Alfaguara)
Em um fenômeno que se pode creditar ao maior número, hoje em dia, de tradutores habilitados a verter as obras diretamente do original, a ficção japonesa se fez presente com intensidade nas estantes brasileiras nos últimos anos. Novas edições de obras de Yukio Mishima traduzidas do japonês, trabalhos do clássico Junichiro Tanizaki e representantes da nova geração globalizada para quem o romance, forma literária do Ocidente por excelência, já foi absorvida sem traumas como uma ferramenta poderosa para expressão artística. É nesse caso que se inclui Haruki Murakami, autor de Minha querida Sputnik, Dance Dance Dance e Norweggian Wood (como vocês podem ver pelos títulos dos livros, a referência à cultura de massa do ocidente é clara). Neste Kafka à Beira-Mar, Murakami conta a história de um adolescente, o Kafka do título, que parte em busca da mãe e da irmã, que abandonaram o lar quando ele era criança. A jornada do jovem vai se cruzar em algum momento com a de um idoso com poderes sobrenaturais.

Uma temporada no Inferno com os Rolling Stones, de Robert Greenfield (Jorge Zahar)
Já ouvi (e li) de muito fã radical dos Stones que a fase da banda que realmente importa atingiu seu ápice (e seu fim) com o disco Exile on Main St. O que torna este livro do jornalista Robert Greenfield tão bem-vindo é que, em vez de fazer uma extensa biografia de uma banda cuja biografia ainda não acabou, usa esse pretexto mínimo, a gravação de um disco clássico, para um féerico retrato de época. Os Stones chegam ao processo de gravação de Exile… aos frangalhos: Brian Jones havia morrido em 1969, todos andavam cheirando demais, bebendo demais, fumando demais, envolvidos em confusão demais. E, perseguidos pelo Fisco inglês, os integrantes da banda se mudaram para a França para escapar das altas taxas britânicas (que deviam ser mesmo pesadas, já que em 1966 George Harrison, daquela outra banda britânica, já as havia abordado em Taxman, do disco Revolver). Dadas as circurnstâncias totalmente adversas de sua produção, Exile on Main St., gravado em um casarão na Riviera que, conta a lenda, teria servido de quartel-general para os nazistas durante a II Guerra, é um prodígio. Acossados por sua já manjada identidade de doidões, os Stones ocuparam o casarão francês com um espírito parecido com o da novela de Sade Saló: ali, longe da polícia inglesa e sob as vistas grossas das autoridades francesas, a banda liberou geral, em excessos clinicamente documentados por Greenfield, intercalando com maestria a narração do inferno pessoal da banda com a composição de uma de suas principais obras.

A volta ao dia em 80 mundos e Último Round, de Júlio Cortázar (Civilização Brasileira)
Ok, ok, aqui são dois livros, mas eles são projetos siameses, a bem dizer, e podem contar nesta lista como um só, porque sua tradução no Brasil saiu agora, em uma bela e simpática edição na qual cada livro tem dois tomos, do tamanho de uma caderneta de bolso e com ilustrações e bossas gráficas presentes nas duas edições originais, em 1967 e 1969. Cortázar aqui não é aquele escritor que todo mundo conhece da experimentação de O Jogo da Amarelinha e da concisão desconcertante de seus contos. Os dois livros são antes cadernos de anotações com impressões esparsas, quase crônicas: tiradas de espírito, digressões intelectuais com o sabor de um texto primoroso mas sem o rigor limitante do ensaio, breves resenhas de jazz, de tango, frases a esmo, como anotações para contos e novelas que o escritor decidiu não escrever e que conservou para sempre nesse estado larvar e fragmentário. 

Absurdistão, de Gary Shteyngart (Rocco)
Pense nesse cara como uma espécie de Gogol Bordello da literatura. Russo de nascimento mas residente nos Estados Unidos, Shteyngart é um grande satirista que alcança o melhor de sua forma neste romance cujo tom sarcástico e ritmo delicioso o aproximam de grandes autores cômicos como Evelyn Waugh ou P.G. Wodehouse, mas com um toque de cinisco contemporâneo que o transforma em um dos melhores do gênero nos dias de hoje. Absurdistão conta a história de Misha Vanberg, de nacionalidade russa, filho do 1238º homem mais rico da Rússia, bon vivant, e residente nos Estados Unidos, onde torra a grana do papai com bebidas, com a boa mesa, com tentativas frustradas de se tornar rapper. Obrigado a viajar para sua terra natal, ele não consegue visto para retornar à sonhada América, e se lança numa odisséia em busca de um passaporte falso para entrar outras vez na “terra da prosperidade”. Para isso, precisa viajar para a corrupta, minúscula e fictícia república do Absurdistão. Lá, é envolvido pelo estouro de uma guerra civil. Sucessão frenética de acontecimentos fantásticos.

Os Melhores Contos de Aventura, organização de Flávio Moreira da Costa (Agir)
O escritor gaúcho Flávio Moreira da Costa já organizou  mais de 20 coletâneas temáticas para quase uma dezena de editoras, reunindo contos de vampiro, de horror, policiais, suspense, contos da América Latina e por aí vai. Esta coletânea de histórias de aventura de grandes mestres como Dumas, Conan Doyle, Jack London e Rudyard Kipling é a primeira na qual a capa não é um sofisticado grafismo qualquer, e sim uma ilustração a bico de pena de um grupo de garotos numa jangada em pleno mar. O que mostra que a própria editora do livro fez concessões à idéia omum associada à literatura de aventura, a de histórias formadoras de leitores, dirigida prioritariamente a garotos. Na verdade, a literatura de aventura incluída neste livro é produzida quando a distinção entre “literatura de aventura” e Literatura, assim mesmo, com L maiúsculo, não existia, e quando a própria noção de histórias voltadas para crianças era menos definida, já que qualquer um dos contos aqui incluídos podem ser lidos por leitores de todas as idades, como o conto O Homem que Queria ser Rei, de Kipling, A Ilha das Vozes, de Stevenson, e até mesmo As academias de Sião, de… Machado de Assis.

As Melhores Entrevistas da Rolling Stone, edição de Jann S. Wenner e Joe Levy (Larousse)
Um livro que prova que um bom material resiste até mesmo à mais porca das edições.  Este livro reúne 40 grandes entrevistas publicadas pela bíblia do rock e do comportamento americano de 1968 até 2005. Estão lá Pete Townshend, Ray Charles, Kurt Cobain, Jack Nicholson, Patti Smith, Keith Richards, John Lennon, Bob Dylan, Bono Vox, Johnny Cash, George Lucas, Phil Spector, Brian Wilson,  Mick Jagger, entre outros. E a única informação adicional sobre as entrevistas, além das perguntas e respostas, é a data de publicação. Ou seja: não há menções ao contexto da entrevista, não há o “olho”, que em jargão jornalístico é como se chama aquele texto de apresentação no qual o repórter dá alguns detalhes saborosos de como o papo se desenrolou, não há sequer uma contextualização da vida do artista na época, tudo sai direto das perguntas e respostas, e ainda assim é um material do caraio. Townshend exorcizando a infância difícil e o trauma do narigão, Jim Morrison e sua teoria de como manipular seus entrevistadores com algumas frases de impacto, John Lennon dizendo que George é um ótimo guitarrista, mas que ele, Lennon, prefere seu próprio estilo, que faz a guitarra “falar” e daí por diante.

Coisas Frágeis, de Neil Gaiman (Conrad)
Conhecido sobejamente por seu trabalho nos quadrinhos, Gaiman tem se tornado cada vez mais respeitado por seu trabalho como escritor em romances como Deuses Americanos e Os Filhos de Anansi. Mas a primeira obra em prosa de Gaiman a ganhar as livrarias do Brasil foi sua coletânea de contos Fumaça e Espelhos, no agora já distante ano de 2008. Este volume é outra coletânea do gênero, juntando textos breves que Gaiman foi produzindo ao longo dos anos para antologias as mais variadas, quase todas por encomenda. Toda coletânea do gênero resulta algo irregular, mas este Coisas Frágeis em particular é ainda mais irregular que Fumaça e Espelhos, e traz nove histórias, apenas a metade do número de histórias do original inglês. Ainda assim, é material rico para fóruns nerd de debates por meses. Destaque para Um estudo em Esmeralda, no qual Gaiman faz o cruzamento improvável entre os universos do vibrante Conan Doyle e do rebuscado H.P. Lovecraft; para A Vez de Outubro, uma lírica e triste história de fantasmas e infância infeliz narrada pelos meses do ano; e para Os fatos no caso da Partida da Senhorita Finch, inspirada por uma ilustração de Frank Frazetta. E, provando que a Matrix está em toda parte, para um conto chamado Golias, escrito para o site do filme antes de ele se tornar o fenômeno pop que se seguiu. Os pontos fracos ficam por conta justamente do retorno de Shadow, o protagonista de Deuses Americanos, em O Monarca do Vale, e o inventivo porém bobinho Como Conversar com Garotas em Festas, no qual a boa premissa inicial é desperdiçada por um desenvolvimento algo certinho demais e bastante previsível. Ainda assim, um dos livros nerd do ano, cum laude.

Do que é feito o Pensamento?, de Steven Pinker (Companhia das Letras)
Filólogo de formação, Nietszche usou ferramentas do estudo da etmologia e das pesquisas da linguagem para desenvolver os estágios iniciais de seu pensamento e analisar como as modificações semânticas que se processaram ao longo do tempo também refletiam alterações culturais e ideológicas das sociedades falantes de seu idioma. Freud examinava chistes e lapsos de linguagem para escavar deles o que de mais recôndito poderia haver na mente humana. O escritor e divulgador científico Steven Pinker, neste livro lançado há pouco mais de três meses, cruza um pouco das duas abordagens e usa a linguagem como elemento chave de pesquisa e janela para um outro tipo de conhecimento. Analisando citações, frases de efeito e textos de nomes famosos, Pinker usa a linguagem como uma trilha para chegar à matéria de que são feitas as estruturas do pensamento humano. A construção de discursos em situações cotidianas pode ser, de acordo com a tese escrita em uma linguagem deveras atraente, revelador do tipo de pensamento que dá origem àquele discurso (e aqui voltamos ao velho tema de Foucault sobre o lugar da enunciação e a luta pela autoridade do discurso). Grande livro para os que curtem ciência sem precisar ser cientistas.

Bonito isso, hein?

Procurando alguma imagem do Sandman para quem sabe colocar no nosso banner aí em cima, acabei esbarrando nas fotos dessas belezinhas aí, que estão sendo lançadas em comemoração aos 20 anos (estou realmente ficando velho) de criação da série. Deve fazer a maior presença na estante, né? Custa “só” U$ 265,99 e dá para encomendar aqui.

Gaiman e seus demônios

Capa da edição nacional de Coisas Frágeis

Capa da edição nacional de "Coisas Frágeis"

Esse texto era para ter sido publicado há uns bons dois meses, mas este integrante do Alerta Geral fica sempre tão concentrado em cumprir os prazos do trabalho que está sempre estourando prazos nas outras áreas de sua vida, mesmo que elas sejam bem mais divertidas do que o trabalho.

Mas como agora falei do Neil Gaiman aí embaixo, finalmente resolvi criar vergonha na cara e comentar algo de sua vinda a Parati para a Festa Literária Internacional da cidade. É, na prática, uma grande feira literária cheia de um certo “glamour” por a cidade ainda manter praticamente intacto seu centro histórico de casario colonial. Digamos que é uma Feira do Livro com charme e um calçamento terrível. Os escritores são convidados para palestras nas quais o primeiro ato é sempre a leitura de trechos de sua obra. E Neil Gaiman chegou com um conto selecionado por ele e que deveria – eu disse DEVERIA – estar na coletânea Coisas Frágeis, que acaba de sair em livro, e sobre a qual ainda quero ler ou ouvir a opinião do SempreAlerta. Mas, eis a surpresa de Gaiman e a minha, que comprei o livro: o volume editado aqui no Brasil pela Conrad tem só metade dos textos do original. Foram limados alguns contos e poemas narrativos característicos de Gaiman, que já havia publicado esse tipo de obra em sua coletânea de contos anterior, Fumaça e Espelhos. E o conto que Gaiman havia trazido para ler foi uma das vítimas do expurgo. De onde se conclui que a editora de Gaiman no Brasil não concorda com o próprio autor na hora de selecionar sua obra.

Mas voltemos ao conto. Como Gaiman insistiu em lê-lo, a Conrad preparou um folhetinho de seis páginas, bilíngüe, que foi entregue aos espectadores da palestra. Como achei o conto muito bom, embora um tanto previsível da metade para o fim, e ele é curtinho, posto aqui para gáudio e deleite de nossos parcos leitores, que, no ritmo em que estamos crescendo, talvez equiparem o número de autores deste blog até 2010. Cliquem abaixo, senhores, par ler um conto de Neil Gaiman que vocês não vão encontrar no livro. A tradução é de Michele A. Vartuli.

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Livro de graça

 

Gaiman na Flip deste ano, em Parati. Foto de Gustavo Scatena/Imagem Paulista

Gaiman na Flip deste ano, em Parati. Foto de Gustavo Scatena/Imagem Paulista

O escritor e roteirista de quadrinhos Neil Gaiman anunciou esta semana em seu blog que, pelo período de um mês, em acordo dele com a HarperColins, seu romance Neverwhere, estará disponível para leitura online e dowload gratuito. Mais detalhes podem ser obtidos no próprio blog do autor, neste link.

Não é a primeira vez que Gaiman oferece acesso grauito pela internet a um livro de sua autoria, ainda que temporariamente. Em fevereiro deste ano, American Gods também foi colocado à disposição do público por um período de 30 dias

Obviamente, o PDF está em inglês, mas considerando que o livro tem edição em português pela Conrad custando R$ 55, vocês decidam o que é melhor.

Lugar Nenhum, nome que Neverwhere ganhou na edição em português, foi escrito primeiramente como roteiro para uma minissérie de TV, e depois foi transformado em um romance (o primeiro publicado pelo escritor, já na época mundialmente famoso pelo seu trabalho em Sandman e Orquídea Negra). A obra de Gaiman neste romance segue sua linha habitual de trabalho, reler com estilo próprio temas e personagens clássicos da mitologia e da grande literatura de fantasia e horror. Ele já fez o mesmo em Sandman, no qual musas, ninfas, fadas, duendes, escritores como Shakespeare, Mark Twain e G.K. Chesterton, além de divindades gregas, nórdicas e orientais, passeavam pelas páginas do gibi. Em Deuses Americanos, divindades germânicas e eslavas tramavam uma tentativa de retorno ao domínio do espírito humano, e em Os Filhos de Anansi um homem se descobre filho do Deus-Aranha Anansi, o senhor das histórias, divindade ancestral africana.

 

Lugar Nenhum

Lugar Nenhum

Lugar Nenhum é um pouco mais modesto, uma espécie de Alice no País das Maravilhas urbano com uma temática social disfarçada em alegoria. É a história de Richard Mayhew, um escocês que se muda para Londres e se torna um analista do mercado financeiro. Tem a vida bem encaminhada, com uma linda noiva que o arrasta por exposições pelos museus da capital inglesa e um emprego ótimo com possibilidades de crescimento. E um dia, quando está caminhando com a noiva por uma rua de Londres a caminho de um jantar importantíssimo com o patrão dela, um magnata das comunicações, Richard encontra na rua uma garota caída, debilitada e coberta de sangue. Sem saber o que fazer, tomado por alguma espécie de febre e por uma certa irresponsabilidade que nem ele próprio entende, Richard deixa a noiva na viela e carrega a garota para a sua casa, onde medica seus ferimentos. Depois que instala a moça em seu apartamento, ele recebe a visita inesperada de dois assustadores sujeitos com sorrisos cruéis, que estão à procura da moça dizendo-se irmãos dela.

Esse encontro fortuito é o ingresso de Richard em uma dimensão de pesadelo e fantasia. Depois que ajuda a misteriosa garota, chamada Door (sim, o significado do nome não é um simples acaso), a voltar para seu mundo, um lugar no subterrâneo chamado “A Londres-de-baixo”, Richard tem sua vida virada do avesso: sua mesa no emprego não existe mais, seu apartamento é alugado, as pessoas não o enxergam e sua noiva não o reconhece. Tocado pelo misterioso reino dos túneis sob Londres, Richard agora não pertence mais ao mundo da superfície, e vai ter de percorrer o subterrâneo em busca da garota para tentar ter sua vida de volta.

É aí que se oculta o comentário social de que falávamos, em uma alegoria que já foi usada outras vezes, mas que aqui resulta eficiente: o mundo subterrâneo como metáfora dos excluídos da sociedade econômica, onde as pessoas à margem, criaturas invisíveis na superfície, estabelecem suas próprias regras (sim, sim, até Claremont já usou isso com os Morlocks dos X-Men). A “Londres-de-baixo” de Lugar Nenhum é feudal, regida por famílias que, apesar da aparência andrajosa, ostentam títulos de nobreza que fazem referência a endereços famosos da capital inglesa. Earl’s Court, só para dar um exemplo, é uma corte regida por um conde que cruza os túneis em um trem invisível para os da “Londres-de-cima”.

Curiosos? Corram lá que o livro só só vai estar disponível por um mês.