Dez livros de 2008
Isto deveria ter sido colocado no ar mais cedo, ainda mais porque o cara que assina este post não parece ter feito outra coisa na última semana que não retrospectiva de livros. Mas o causo é que para o Alerta Geral e suas especificidades, decidi fazer uma retrospectiva toda nova, analisando os livros mais bacanas que aportaram aqui no Brasil em 2008 e que tenham a ver com a proposta do blog, ou seja, circundem temas como tecnologia, cultura pop, ficção científica, rock’n’roll e afins. Digamos que é uma retrospectiva de literatura nerd ou ao menos para interessados. Com vocês, meus 10 livros de 2008, sem necessariamente ordem hierárquica:
Mona Lisa Overdrive, de William Gibson (Aleph)
Quem já navegou por este nosso site viu que Matrix, o filme, foi tema de discussão intensa por parte do nosso camarada Tcheloco. Uma coisa que sempre me chamou a atenção é que, quando se fala em Matrix, sempre se ressalta a originalidade do primeiro filme, e sim, os elementos foram realmente dispostos de modo bem original. Mas muita gente esquece de dizer que Matrix é, ao mesmo tempo, uma das melhores adaptações literárias de todos os tempos, até porque não é uma versão para a tela de um único livro, mas de toda uma corrente da ficção contemporânea, a assim denominada ficção cyberpunk, uma linhagem de obras de ficção científica que trata de temas como as relações tênues entre o real e o virtual, interações homem-máquina, e anti-heróis marginais que vivem à margem do sistema em uma sociedade na maioria das vezes totalitária. Um dos papas do gênero, William Gibson, foi quem primeiro cunhou termos como “ciberespaço”, em Neuromancer (1982), lançado há três anos em português pela Aleph, e Matrix, neste Mona Lisa Overdrive (1988), livro que encerra a trilogia iniciada com Neuromancer e que conta ainda com Count Zero (também já publicado no Brasil). Em uma narrativa contada por cinco pontos-de-vista diferentes, Gibson mostra um mundo futurista no qual o grande barato é as pessoas se conectarem ao universo virtual chamado “matrix” para viver uma espécie de alucinação sensorial coletiva que substitui a realidade. Ali, os usuários participam de “stims”, filmes interativos com imersão virtual, grande sucesso de público. O livro mostra também que, desde o início de sua carreira, Gibson evoluiu no tratamento do tema e no manejo da trama, conseguindo dar a cada personagem uma voz e uma personalidade independente.
Nevasca, de Neal Stephenson (Aleph)
Se Gibson antecipou a internet e os ambientes de conexão em rede e realidade virtual, este outro gênio do gênero cyberpunk criou, em Nevasca (1992), uma delirante ficção científica postulando uma realidade na qual os usuários se conectam a um ambiente virtual por meio de uma representação gráfica de si mesmos, um “avatar” – e se alguém pensou em Second Life saiba que não é coincidência, o ambiente foi desenvolvido com alguma inspiração no livro, e não o contrário. Como costuma acontecer em ficções cyberpunk, o mundo como o conhecemos foi pro buraco, a realidade é uma selva de asfalto com bandoleiros sobre rodas e a economia já foi pro saco há horas, com os Estados Unidos transformados em um território de crimes e negócios ilícitos, uma constelação de estados independentes, alguns controlados por corporações financeiras e outras por mafiosos barra-pesada. Nessa realidade desencantada, trabalhar para a Máfia é a única chance de prosperar — e também de se ralar bonitinho. O personagem principal, Hiro Protagonist, é um entregador de pizza e um samurai urbano (não sei por que, mas as ficções científicas de modo geral padecem de um mesmo problema: a história contada no livro é ótima, mas sempre parece um pouco ridícula quando se resume) durante o dia e um freqüentador do “metaverso” à noite, onde assume a personalidade de um avatar.
Kafka à Beira-Mar, de Haruki Murakami (Alfaguara)
Em um fenômeno que se pode creditar ao maior número, hoje em dia, de tradutores habilitados a verter as obras diretamente do original, a ficção japonesa se fez presente com intensidade nas estantes brasileiras nos últimos anos. Novas edições de obras de Yukio Mishima traduzidas do japonês, trabalhos do clássico Junichiro Tanizaki e representantes da nova geração globalizada para quem o romance, forma literária do Ocidente por excelência, já foi absorvida sem traumas como uma ferramenta poderosa para expressão artística. É nesse caso que se inclui Haruki Murakami, autor de Minha querida Sputnik, Dance Dance Dance e Norweggian Wood (como vocês podem ver pelos títulos dos livros, a referência à cultura de massa do ocidente é clara). Neste Kafka à Beira-Mar, Murakami conta a história de um adolescente, o Kafka do título, que parte em busca da mãe e da irmã, que abandonaram o lar quando ele era criança. A jornada do jovem vai se cruzar em algum momento com a de um idoso com poderes sobrenaturais.
Uma temporada no Inferno com os Rolling Stones, de Robert Greenfield (Jorge Zahar)
Já ouvi (e li) de muito fã radical dos Stones que a fase da banda que realmente importa atingiu seu ápice (e seu fim) com o disco Exile on Main St. O que torna este livro do jornalista Robert Greenfield tão bem-vindo é que, em vez de fazer uma extensa biografia de uma banda cuja biografia ainda não acabou, usa esse pretexto mínimo, a gravação de um disco clássico, para um féerico retrato de época. Os Stones chegam ao processo de gravação de Exile… aos frangalhos: Brian Jones havia morrido em 1969, todos andavam cheirando demais, bebendo demais, fumando demais, envolvidos em confusão demais. E, perseguidos pelo Fisco inglês, os integrantes da banda se mudaram para a França para escapar das altas taxas britânicas (que deviam ser mesmo pesadas, já que em 1966 George Harrison, daquela outra banda britânica, já as havia abordado em Taxman, do disco Revolver). Dadas as circurnstâncias totalmente adversas de sua produção, Exile on Main St., gravado em um casarão na Riviera que, conta a lenda, teria servido de quartel-general para os nazistas durante a II Guerra, é um prodígio. Acossados por sua já manjada identidade de doidões, os Stones ocuparam o casarão francês com um espírito parecido com o da novela de Sade Saló: ali, longe da polícia inglesa e sob as vistas grossas das autoridades francesas, a banda liberou geral, em excessos clinicamente documentados por Greenfield, intercalando com maestria a narração do inferno pessoal da banda com a composição de uma de suas principais obras.
A volta ao dia em 80 mundos e Último Round, de Júlio Cortázar (Civilização Brasileira)
Ok, ok, aqui são dois livros, mas eles são projetos siameses, a bem dizer, e podem contar nesta lista como um só, porque sua tradução no Brasil saiu agora, em uma bela e simpática edição na qual cada livro tem dois tomos, do tamanho de uma caderneta de bolso e com ilustrações e bossas gráficas presentes nas duas edições originais, em 1967 e 1969. Cortázar aqui não é aquele escritor que todo mundo conhece da experimentação de O Jogo da Amarelinha e da concisão desconcertante de seus contos. Os dois livros são antes cadernos de anotações com impressões esparsas, quase crônicas: tiradas de espírito, digressões intelectuais com o sabor de um texto primoroso mas sem o rigor limitante do ensaio, breves resenhas de jazz, de tango, frases a esmo, como anotações para contos e novelas que o escritor decidiu não escrever e que conservou para sempre nesse estado larvar e fragmentário.
Absurdistão, de Gary Shteyngart (Rocco)
Pense nesse cara como uma espécie de Gogol Bordello da literatura. Russo de nascimento mas residente nos Estados Unidos, Shteyngart é um grande satirista que alcança o melhor de sua forma neste romance cujo tom sarcástico e ritmo delicioso o aproximam de grandes autores cômicos como Evelyn Waugh ou P.G. Wodehouse, mas com um toque de cinisco contemporâneo que o transforma em um dos melhores do gênero nos dias de hoje. Absurdistão conta a história de Misha Vanberg, de nacionalidade russa, filho do 1238º homem mais rico da Rússia, bon vivant, e residente nos Estados Unidos, onde torra a grana do papai com bebidas, com a boa mesa, com tentativas frustradas de se tornar rapper. Obrigado a viajar para sua terra natal, ele não consegue visto para retornar à sonhada América, e se lança numa odisséia em busca de um passaporte falso para entrar outras vez na “terra da prosperidade”. Para isso, precisa viajar para a corrupta, minúscula e fictícia república do Absurdistão. Lá, é envolvido pelo estouro de uma guerra civil. Sucessão frenética de acontecimentos fantásticos.
Os Melhores Contos de Aventura, organização de Flávio Moreira da Costa (Agir)
O escritor gaúcho Flávio Moreira da Costa já organizou mais de 20 coletâneas temáticas para quase uma dezena de editoras, reunindo contos de vampiro, de horror, policiais, suspense, contos da América Latina e por aí vai. Esta coletânea de histórias de aventura de grandes mestres como Dumas, Conan Doyle, Jack London e Rudyard Kipling é a primeira na qual a capa não é um sofisticado grafismo qualquer, e sim uma ilustração a bico de pena de um grupo de garotos numa jangada em pleno mar. O que mostra que a própria editora do livro fez concessões à idéia omum associada à literatura de aventura, a de histórias formadoras de leitores, dirigida prioritariamente a garotos. Na verdade, a literatura de aventura incluída neste livro é produzida quando a distinção entre “literatura de aventura” e Literatura, assim mesmo, com L maiúsculo, não existia, e quando a própria noção de histórias voltadas para crianças era menos definida, já que qualquer um dos contos aqui incluídos podem ser lidos por leitores de todas as idades, como o conto O Homem que Queria ser Rei, de Kipling, A Ilha das Vozes, de Stevenson, e até mesmo As academias de Sião, de… Machado de Assis.
As Melhores Entrevistas da Rolling Stone, edição de Jann S. Wenner e Joe Levy (Larousse)
Um livro que prova que um bom material resiste até mesmo à mais porca das edições. Este livro reúne 40 grandes entrevistas publicadas pela bíblia do rock e do comportamento americano de 1968 até 2005. Estão lá Pete Townshend, Ray Charles, Kurt Cobain, Jack Nicholson, Patti Smith, Keith Richards, John Lennon, Bob Dylan, Bono Vox, Johnny Cash, George Lucas, Phil Spector, Brian Wilson, Mick Jagger, entre outros. E a única informação adicional sobre as entrevistas, além das perguntas e respostas, é a data de publicação. Ou seja: não há menções ao contexto da entrevista, não há o “olho”, que em jargão jornalístico é como se chama aquele texto de apresentação no qual o repórter dá alguns detalhes saborosos de como o papo se desenrolou, não há sequer uma contextualização da vida do artista na época, tudo sai direto das perguntas e respostas, e ainda assim é um material do caraio. Townshend exorcizando a infância difícil e o trauma do narigão, Jim Morrison e sua teoria de como manipular seus entrevistadores com algumas frases de impacto, John Lennon dizendo que George é um ótimo guitarrista, mas que ele, Lennon, prefere seu próprio estilo, que faz a guitarra “falar” e daí por diante.
Coisas Frágeis, de Neil Gaiman (Conrad)
Conhecido sobejamente por seu trabalho nos quadrinhos, Gaiman tem se tornado cada vez mais respeitado por seu trabalho como escritor em romances como Deuses Americanos e Os Filhos de Anansi. Mas a primeira obra em prosa de Gaiman a ganhar as livrarias do Brasil foi sua coletânea de contos Fumaça e Espelhos, no agora já distante ano de 2008. Este volume é outra coletânea do gênero, juntando textos breves que Gaiman foi produzindo ao longo dos anos para antologias as mais variadas, quase todas por encomenda. Toda coletânea do gênero resulta algo irregular, mas este Coisas Frágeis em particular é ainda mais irregular que Fumaça e Espelhos, e traz nove histórias, apenas a metade do número de histórias do original inglês. Ainda assim, é material rico para fóruns nerd de debates por meses. Destaque para Um estudo em Esmeralda, no qual Gaiman faz o cruzamento improvável entre os universos do vibrante Conan Doyle e do rebuscado H.P. Lovecraft; para A Vez de Outubro, uma lírica e triste história de fantasmas e infância infeliz narrada pelos meses do ano; e para Os fatos no caso da Partida da Senhorita Finch, inspirada por uma ilustração de Frank Frazetta. E, provando que a Matrix está em toda parte, para um conto chamado Golias, escrito para o site do filme antes de ele se tornar o fenômeno pop que se seguiu. Os pontos fracos ficam por conta justamente do retorno de Shadow, o protagonista de Deuses Americanos, em O Monarca do Vale, e o inventivo porém bobinho Como Conversar com Garotas em Festas, no qual a boa premissa inicial é desperdiçada por um desenvolvimento algo certinho demais e bastante previsível. Ainda assim, um dos livros nerd do ano, cum laude.
Do que é feito o Pensamento?, de Steven Pinker (Companhia das Letras)
Filólogo de formação, Nietszche usou ferramentas do estudo da etmologia e das pesquisas da linguagem para desenvolver os estágios iniciais de seu pensamento e analisar como as modificações semânticas que se processaram ao longo do tempo também refletiam alterações culturais e ideológicas das sociedades falantes de seu idioma. Freud examinava chistes e lapsos de linguagem para escavar deles o que de mais recôndito poderia haver na mente humana. O escritor e divulgador científico Steven Pinker, neste livro lançado há pouco mais de três meses, cruza um pouco das duas abordagens e usa a linguagem como elemento chave de pesquisa e janela para um outro tipo de conhecimento. Analisando citações, frases de efeito e textos de nomes famosos, Pinker usa a linguagem como uma trilha para chegar à matéria de que são feitas as estruturas do pensamento humano. A construção de discursos em situações cotidianas pode ser, de acordo com a tese escrita em uma linguagem deveras atraente, revelador do tipo de pensamento que dá origem àquele discurso (e aqui voltamos ao velho tema de Foucault sobre o lugar da enunciação e a luta pela autoridade do discurso). Grande livro para os que curtem ciência sem precisar ser cientistas.
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